Blog

Notas sobre o antropoceno em Relações Internacionais

03/12/2020

Victor Casagrande

Em 2019, o Grupo de Trabalho do Antropoceno, vinculado à Comissão Internacional de Estratigrafia, concluiu que as explosões atômicas de meados do século XX podem ser entendidas como marco inicial da Época Antropocênica – uma nova época geológica na qual o conjunto das atividades humanas é o principal vetor de transformação dos processos biofísicos em curso na superfície do planeta Terra¹. Embora o termo deva ser oficializado pela comissão somente em 2021, há anos a magnitude dessa transformação tem feito sentir-se em diversos ramos do conhecimento, uma vez que representa a dramática amálgama de múltiplos processos que desembocam em uma verdadeira ameaça existencial à vida e parecem selar a inexorabilidade da intersecção entre ciências naturais e humanas. Assim, cabe perguntar: como pensar o fenômeno do Antropoceno na disciplina de Relações Internacionais (RI)?

Em primeiro lugar, vale destacar que embora os pesquisadores da área reconheçam a centralidade da pauta ambiental para este século, apenas uma minoria dedica seu trabalho a essa agenda. Frequentemente, o tema é lido por quadros teóricos que se dedicam a pensar separadamente a segurança internacional, o desenvolvimento econômico ou os Direitos Humanos, como quando, por exemplo, olha para as questões migratórias. Mais escasso ainda é o volume de pesquisas que se engajam diretamente com o Antropoceno, sendo perceptível a dificuldade da disciplina em oferecer respostas à altura do desafio². Eduardo Viola, Matías Franchini e Ana Barros (2017)³, ao contrário, oferecem reflexões pertinentes e destacam o potencial – bem como a necessidade – de não apenas inovar a perspectiva das RI, mas também inovar o que a disciplina pode prospectivamente sugerir.

Os autores fazem um diálogo com o Antropoceno a partir da entrada da agenda ambiental no cenário internacional. Eles mostram que da Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente Humano (1972) até a RIO92, a agenda foi frutífera em catalisar o debate e criar instrumentos normativos basilares. Contudo, da Conferência de Johannesburg (2002) ao mais recente Acordo de Paris (2015), quem as RI por afinidade chama de comunidade internacional (ou a espécie humana, como tratarei adiante) mostrou-se incapaz de produzir novos dispositivos legais vinculantes para proteção ambiental, a despeito do agravamento da crise ecológica e seu caráter “multiplicador de riscos”⁴.

Paralelamente, nesse mesmo período, não por coincidência, o campo da produção científica tem a publicação de “The Limits to Growth” (1972) pelo Clube de Roma como o marco inicial de um movimento de pesquisa acerca dos impactos humanos sobre a vida no planeta⁵. Duramente criticado e desacreditado no início, esse trabalho assistiu as evidências sobre a profunda alteração ambiental se avolumaram ao longo dos anos, tendo como um longo desdobramento, a criação em 2009 de um quadro teórico chamado de Sistema Terra⁶. Esse modelo advoga por um “espaço de manobra seguro para humanidade” e é composto por nove “limites planetários” interrelacionados: mudança climática; perda da biodiversidade; interferência nos ciclos de fósforo e nitrogênio; acidificação dos oceanos; uso do solo; disponibilidade de água potável; depredação da camada de ozônio; acúmulo de aerossóis; e poluição química. Desses limites planetários, três já foram excedidos: a mudança do clima, em função da emissões de gases estufa; o ciclo do nitrogênio, decorrente da atividade agropecuária; e a perda da biodiversidade, provocada por exemplo pelo desmatamento e pela desestabilização dos outros sistemas, como os dois apontados previamente.

Dessa forma, temos que o saldo final de quase 50 anos de política ambiental internacional é de um profundo e crescente descolamento entre o consenso científico sobre o caráter antropogênico da crise ecológica e as respostas políticas dadas até agora. Em outras palavras, a capacidade dos instrumentos de cooperação desenvolvidos no Holoceno não tem conseguido acompanhar a demanda por mais governança global, hoje cobrada pelo Antropoceno. Essa debilidade é estrutural e advém da incompatibilidade entre a resistência do paradigma soberanista e a urgente proteção dos limites planetários enquanto um bem global comum⁷. Assim, posto que vivemos sob o que Viola et. al (2017) chamam de um “Sistema Internacional de Hegemonia Conservadora”, a superação do paradigma Westfaliano é a premissa fundamental, pela ótica das RI, para a governança do Antropoceno, segundo os autores⁸.

Faço coro junto à crítica de que essa resistência seja reflexo de uma inadequação ontológica e epistemológica por parte das correntes dominantes, que se mostram insuficientes para absorver a escala e o caráter multidimensional das transformações em curso, de modo geral aprisionadas pela dicotomia desenvolvido/em desenvolvimento, especialmente no caso do institucionalismo liberal. Essa corrente em particular produz um regime ambiental duplamente isolado ao inviabilizar estrategias holísticas, fragmentando atores e ideias em campos temáticos, como mencionado anteriormente, e ao omitir o vínculo entre a degradação ambiental e os fundamentos lógicos da economia-política global⁹.

Todavia, Chakrabarty (2009) ressalva que a crítica ao capitalismo é insuficiente para entender a crise planetária¹⁰. Tivessemos tido um desenvolvimento de modelo soviético, é provável que eventualmente nos deparassemos com os limites planetários, tendo em vista que o problema reside na redução da natureza a condição de recurso econômico. Daí inclusive minha preferência pelo termo Antropoceno em detrimento de seu derivado, Capitaloceno. Aqui marco um segundo ponto, no sentido de expor as limitações em responder a pergunta inicial. Trata-se não de negar as assimetrias entre países desenvolvidos e em desenvolvimento, tampouco negar o caráter expropriador do capital sublinhado pelas teorias alternativas de cunho crítico, decolonial, feminista, queer e ecopolítico¹¹, mas de reconhecer que há um desafio de fundo colocado à própria modernidade, paulatinamente sufocada (ainda em tempos de Covid-19) pelas ondas da sexta extinção em massa.

Pensar a espécie humana – e não uma comunidade de países – como força geológica¹² e a Terra como sistema socioecológico¹³, significa atentar-se a transfiguração da relação fundante do moderno enquanto sujeito-objeto em sujeito-sujeito. A crise é “com efeito, de um cada vez mais ambíguo ambiente, que não mais sabemos onde está em relação à nós, nem nós em relação a ele”¹⁴. Ou seja, toda ação retroage sobre os sujeitos. Um caminho possível para buscar olhar essa relação sujeito-sujeito é pela cosmovisão ameríndia da “humanidade” enquanto “bloco de afetos, corporalidade vivida, subjetividade perspectiva em tensão cosmopolítica perpétua com as outras humanidades ocultas sob as corporalidades das outras espécies”¹⁵. Dito de outra maneira, expressões como “governança”, “recursos” e eu retomaria “desenvolvimento”, se relegadas a perspectivas que não acolham radicalmente a percepção da realidade como um tecido relacional de sujeitos viventes e não viventes, uma “sociedade de sociedades”, incorremos no risco de retornar ao dualismo natureza-cultura, “com os cientistas naturais mesmerizados pelos ‘parâmetros geofísicos’ e equipados com uma noção de ‘humanidade’ vaga e de escassa eficácia política, enquanto os cientistas sociais simplesmente rebatizam de ‘justiça ambiental’ a perene e incontornável luta pelos direitos dos deserdados da Terra, isto é, a ‘justiça social’”¹⁶.

Nesse sentido, parece-me que há aí um substrato vivo e potente para o avanço dessas teorias alternativas, para as quais noções de afeto, corporalidade e subjetividade são centrais. Articulando-se de maneira conjunta, talvez as mesmas possam mover o que é linear, fixo, estático, extrativista e competitivo, para aquilo que é circular, relativo, dinâmico, regenerativo e colaborativo, postulando como fundamento a própria viabilidade e sustentação da vida interespecies em escala global. Isso implica em reconhecer explicitamente a guerra para negociar a paz entre os modernos e os não-modernos em um sentido lautouriano¹⁷, libertando as possibilidades políticas futuras de um mundo com nós¹⁸ cuja multiplicidade de práticas atribua um sentido concreto à reforma e ao fortalecimento dos organismos normativos-institucionais de governança global. Distanciando-os, assim, do (des)arranjo soberano e orientado-os para os limites planetários, inclusive através de um “parlamento representativo da população mundial”¹⁹ que supere a territorialização e a representação estatal.

Portanto, diante da tarefa hercúlea de adiar “o fim do mundo”, pensar o Antropoceno em Relações Internacionais é confrontar o negacionismo e o fracasso²⁰. É, em parte, ressuscitar o idealismo barato que de tempos em tempos se levanta contra o “deserto da realidade”²¹, contra o horror que funda a disciplina no pós-Guerra, contra o perigo nuclear que a consolida e as implicações não resolvidas de vivermos todos sob uma ameaça existencial. É um convite à inventividade e à imaginação política para cumprir menos uma razão e mais um sentiment d’être em RI que é mediar a guerra e a paz.

Victor Casagrande Souza é graduando de Relações Internacionais pelo IRI-USP.

Notas

1 SUBRAMANIAN, M. Anthropocene now: influential panel votes to recognize Earth’s new epoch. Nature, 2019. Último acesso em 08/11/2020 https://www.nature.com/articles/d41586-019-01641-5
2 Ver HARRINGTON, C. The Ends of the World: International Relations and the
Anthropocene. Millennium: Journal of International Studies, v. 44, n.3, p. 478–498, jun. 2016; SIMANGAN, D. Where is the Asia Pacific in mainstream international
3 FRANCHINI, M.; VIOLA, E.; BARROS-PLATIAU, A. F. The Challenges of the
Anthropocene: from International Environmental Politics to Global Governance. Ambiente & Sociedade, v. 20, n. 3, p. 177–202, set.2017.
4 Conceito frequentemente empregado pelos estudiosos de segurança e organizações como o Departamento de Defesa americano e as Nações Unidas. Ver por exemplo “QDR – the national security challenge of climate change”. ASP. 2014
5 Ver “Jorgen Randers – The Limits to Growth (1972) in a 50 years perspective”. Último acesso em 21/11/2020 < https://www.youtube.com/watch?v=ykFXvUDnw9Y&t=1s>; “Dennis Meadows – Perspectivs on the Limits of Growth: It is too late for sustainable development”. Último acesso em 19/11/2020 < https://www.youtube.com/watch?v=f2oyU0RusiA>
6 ROCKSTRÖM, J. et al. A safe operating space for humanity. Nature, v. 461, n. 7263, p. 472–475, set 2009
7 FRANCHINI, M.; VIOLA, E.; BARROS-PLATIAU, A. F. The Challenges of the Anthropocene: from International Environmental Politics to Global Governance. Ambiente & Sociedade, v. 20, n. 3, p. 177–202, set.2017
8 ROCKSTRÖM, J. et al. A safe operating space for humanity. Nature, v. 461, n. 7263, p. 472-475, set. 2009
9 ROCKSTRÖM, J. et al. A safe operating space for humanity. Nature, v. 461, n. 7263, p. 472–475, set. 2009
10 CHAKRABARTY, Dipesh. The Climate of History. Critical Inquiry, 35. 2009
11 Estou me referindo aqui a obras como “Why is there no Queer International Theory?” Cynthia Weber (2014), “Interspecies Relation, International Relations: Rethinking Anthropocentric Politics” de Rafi Youatt (2017), e outras.
12 FRANCHINI, M.; VIOLA, E.; BARROS-PLATIAU, A. F. The Challenges of the Anthropocene: from International Environmental Politics to Global Governance. Ambiente & Sociedade, v. 20, n. 3, p. 177–202, set. 2017
13 Biermann, F. et al. Earth System Governance: People, Places and Planet. Global Governance, nº1, p. 148, 2009 apud VIOLA, E. et al (2017)
14 DANOWSKI, D.; VIVEIROS DE CASTRO, E. Há mundo por vir? Ensaio sobre os medos e os fins. p.26, Instituto Socioambiental, 2014
15 DANOWSKI, D.; VIVEIROS DE CASTRO, E. Há mundo por vir? Ensaio sobre os medos e os fins. p.26, Instituto Socioambiental, 2014.
16 DANOWSKI, D.; VIVEIROS DE CASTRO, E. Há mundo por vir? Ensaio sobre os medos e os fins. p. 26, Instituto Socioambiental, 2014
17 LATOUR, Bruno. Facing Gaia: six lectures on the political theology of nature, being the Gifford Lectures on Natural Religion. Edinburgh 18-28 fev, 2013 apud idem
18 Faço aqui um jogo de palavras com o experimento mental de Weisman em “The World Without Us” (2007) no qual a espécie humana desaparece por um evento não explicado. Chakrabarty (2009) observa que esse experimento interrompe o passado-futuro desprovendo o presente de sentido, argumentando “o futuro deixa de ser feito da mesma matéria que o passado, torna-se radicalmente outro, não-nosso, um tempo que exige a nossa desaparição para aparecer. A história se degrada metafisicamente, tornando-se passageira como qualquer fenômeno, justamente, histórico”.
19 Idem
20 HARRINGTON, C. The Ends of the World: International Relations and the Anthropocene. Millennium: Journal of International Studies, v. 44, n.3, p. 478–498
21 Fala do personagem Morpheus no filme Matrix (1999).