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Sobre a questão da ciber-soberania na China

11/11/2020

Bernardo João do Rego Monteiro Moreira

Felipe Pessoa Duran

Na World Internet Conference em 2015, o presidente Xi Jinping definiu ‘ciber-soberania’ como o direito de uma nação de desenvolver e regular sua internet. O termo tem sido usado pelo governo da China em sua agenda política e legislativa, para caracterizar a estratégia de construção de um “prisma holístico de segurança” no campo cibernético. Sendo uma extensão da soberania nacional para o ciberespaço, a ciber-soberania consiste nos direitos de jurisdição, autodefesa, independência e igualdade dos países. Em nível internacional, a sexta Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou em junho de 2013 um relatório estipulando que a soberania nacional deve passar a se estender às atividades de tecnologias de informação e comunicação e nas jurisdições correspondentes do território nacional (Documento A/68/98)1, reforçando assim a noção de uma ciber-soberania. A ciber-soberania é considerada uma ameaça à liberdade e à internet como um espaço público global desterritorializado, enquanto tal ausência de fronteiras e legislação se demonstra uma ameaça para o império da lei, levando os países a buscarem a construção de sua ciber-soberania, sendo a China um dos protagonistas deste processo de emergência da natureza geopolítica da internet.

Em fevereiro de 2014, Xi Jinping assumiu o cargo de diretor do Central Internet Security and Informatization Leading Group, posteriormente transformado em Central Cyberspace Affairs Commission (CCAC), um órgão com a função de coordenar o desenvolvimento de políticas relacionadas à cibersegurança. Por ser subordinado ao Comitê Central, o processo de aprovação de legislação é acelerado. Isso demonstra o plano do governo chinês em elevar a cibersegurança em nível nacional. Em novembro de 2016, a China aprovou a Lei de Cibersegurança, que além de cumprir as metas anteriormente estabelecidas de elevar a cibersegurança em nível nacional e de aprofundar o conceito de ciber-soberania, concedeu um poder maior ao governo para registrar e controlar informações disseminadas na internet que fossem consideradas ilegais. A lei foi introduzida pela Cyberspace Administration of China (CAC), subordinada ao CCAC.

Essa lei obteve reações múltiplas: caracterizada como protecionista (por exigir que informações produzidas na China fiquem na China, criando obstáculos de competitividade no mercado principalmente para tech companies estrangeiras, que precisam de aprovação do governo); outros a caracterizam como uma intensificação da censura (por permitir que os órgãos governamentais competentes possam punir empresas que permitem a circulação de informações consideradas ilegais pelo governo, devido à ambiguidade da lei); e alguns apontam que a lei reforça a segurança e a privacidade da população doméstica (a maior parte das melhorias nesses quesitos se assemelham às normas de privacidade da União Europeia2). Os pontos principais da lei podem ser resumidos em construir um sistema legal de cibersegurança, formalizar a capacidade de monitoramento e controle de informação e exigir a colaboração de empresas estrangeiras com as normas estabelecidas. A exigência pela verificação da identidade real dos usuários, um dos pontos reforçados pela Lei de Cibersegurança, reflete a peculiaridade do cenário chinês de privacidade e segurança cibernética.

A legislação chinesa de cibersegurança (sendo a Lei de Cibersegurança de 2016 a mais importante e abrangente até o momento), se caracteriza pela: a) centralização da governança cibernética em órgãos estratégicos ligados ao governo central; b) pela criação de obstáculos de competitividade no mercado para empresas de tecnologia estrangeira; c) por um controle maior sobre o fluxo de informação nas redes de internet no país, exigindo armazenamento local de informação considerada crítica e; d) para o estabelecimento de regulações e normas de padrões de segurança para tecnologias, equipamentos, produtos, infraestrutura e serviços cibernéticos, com devidas punições em caso de não-cumprimento destas. Com as reformulações do relacionamento entre a sociedade e o Estado causadas pela introdução da internet no país, o controle de informação é tido como central para preservar a estabilidade do regime. Uma das principais tecnologias de controle e cibersegurança chama-se Golden Shield, também conhecido como Great Firewall, implementado em 2003 para maior regulação dos conteúdos online. Até a criação do CCAC, a maior parte das regulações e políticas de governança do ciberespaço eram emitidas pelos ministérios e suas agências. Após 2014, as principais regulações e políticas em nível nacional passaram a ser emitidas pelo CCAC e seus órgãos subordinados, centralizando ainda mais a governança do ciberespaço do país. Com a promulgação da Estratégia de Segurança do Ciberespaço da China em dezembro de 2016 e a Estratégia Internacional de Cooperação no Ciberespaço em março de 2017, o princípio da ciber-soberania tornou-se ainda mais essencial para a agenda política de cibersegurança da China.

A busca pela ciber-soberania e um “equilíbrio global” estabelecida por esse corpo legal levou uma série de grandes empresas estadunidenses (como a Netflix e a Amazon) a se enquadrarem nas novas normas chinesas. Operando nos Estados Unidos, essas empresas se encontram num ambiente de laissez-faire, em oposição ao ambiente de “segurança dos interesses nacionais” operante na China, tanto no quesito de armazenamento de dados de usuários como no sistema de punições em caso de falhas de segurança ou outras transgressões. Nos EUA, não há legislação substantiva que proteja dados de usuários de data breaches. No governo Trump, os EUA têm adotado cada vez mais uma estratégia similar à “segurança dos interesses nacionais”, aplicando restrições e sanções às empresas chinesas. A legal warfare chinesa, consistindo em suas iniciativas jurídico-legais para ampliar sua cibersegurança e reforçar sua ciber-soberania, permitem uma estratégia de justificativa pré conflito e resolução legal pós-conflito, além de tomar atitudes retaliatórias frente às sanções do governo dos EUA. Uma consequência importante da aplicação deste legal warfare foi o acordo com a Apple em 20173 para colaborar com o governo chinês caso dados de usuários fossem solicitados e para estabelecer um centro de armazenamento de dados na China (um dos pontos centrais da Lei de Cibersegurança).

Pensando no futuro, a China definiu suas metas de inovação tecnológica e industrial no Made In China 2025, onde planeja impulsionar o crescimento doméstico nas indústrias de mídia e tecnologia pela substituição de importação e desenvolvimento doméstico. Assim, o país pode desenvolver competidores locais para fornecer suas principais tecnologias, reforçando sua ciber-soberania e suas fronteiras digitais. Tanto a dependência do mercado chinês de tecnologias estadunidenses quanto os conflitos ligados à atividade de hacking, supostamente usada tanto pelo governo dos EUA quanto pelo governo da China (inclusive por seus setores militares) aumentam o clima de insegurança em relação ao ciberespaço e à segurança de dados, intensificado pelos escândalos envolvendo as revelações de Edward Snowden sobre os esquemas de espionagem do governo dos EUA. Devido à ausência de uma agência centralizada de cibersegurança dos EUA, a China tem ganhado vantagem na disputa e expandido suas fronteiras cibernéticas, seus mercados e seu poderio de informação.

Tendo objetivos variados, os impactos a curto, médio e longo prazo dessa estratégia são múltiplos: o fortalecimento da economia chinesa, a construção de uma política protecionista de prioridade às empresas nacionais e estatais na produção de tecnologia de ponta, a intensificação da disputa com os Estados Unidos, maior estabilidade frente a ameaças à integridade nacional como tentativas de Revoluções Coloridas e terrorismo separatista (como as insurgências em Hong Kong e Xinjiang) e a crescente proteção, segurança, privacidade e controle do fluxo de dados. Na dinâmica de conflitos e complementaridades da soberania nacional com as forças multipolares da globalização, a China busca afirmar seu ciber-poder e a territorialidade de sua internet, de fronteiras ainda porosas. Desta forma, altera-se o ciberespaço, ou melhor, a “ciber-esfera”4: torna-se geopolítica, territorializada.

Referências Bibliográficas:

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KOKAS, Aynne. Platform Patrol: China, the United States, and the Global Battle for Data Security. The Journal of Asian Studies, vol. 77, no. 4, p. 923–933, Nov. 2018. DOI 10.1017/s0021911818002541. Available at: http://dx.doi.org/10.1017/S0021911818002541.

QI, Aimin; SHAO, Guosong; ZHENG, Wentong. Assessing China’s Cybersecurity Law. Computer Law & Security Review, vol. 34, no. 6, p. 1342–1354, Dec. 2018. DOI 10.1016/j.clsr.2018.08.007. Available at: http://dx.doi.org/10.1016/j.clsr.2018.08.007.

YANG, Feng; MUELLER, Milton L. Internet governance in China: a content analysis. Chinese Journal of Communication, vol. 7, no. 4, p. 446–465, 16 Jul. 2014. DOI 10.1080/17544750.2014.936954. Available at: http://dx.doi.org/10.1080/17544750.2014.936954.

Bernardo João do Rego Monteiro Moreira é pesquisador pelo Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica do CNPq/UFF, pesquisador vinculado ao Grupo de Análise em Política Internacional (GAPI) – PPGCP/UFF e graduando em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense.

Felipe Pessoa Duran é mestrando em Ciência Política pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e pesquisador vinculado ao Grupo de Análise em Política Internacional (GAPI) – PPGCP/UFF.