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Foto da pesquisa de campo realizada pela autora com refugiados que solicitaram a reunião familiar. A foto esconde a cara dos refugiados para a garantia da confidencialidade.

O Ministério das Relações Exteriores e a política brasileira para a reunião familiar de refugiados: como o Brasil separa famílias

20/12/2019

Patrícia Nabuco Martuscelli

O conceito de refúgio foi criado juridicamente em 1951 com a Convenção das Nações Unidas sobre o Estatuto dos Refugiados para fornecer uma resposta para milhares de pessoas deslocadas de maneira forçada na Europa por causa da Segunda Guerra Mundial. Seu cerne se relaciona com a possibilidade de um Estado oferecer proteção para um nacional de um outro Estado quando esse Estado em questão não consegue proteger seu cidadão. Contudo, para que uma pessoa possa solicitar refúgio, ela precisa estar no território do Estado, ou seja, é necessário que ela tenha atravessado uma fronteira internacional. O refúgio é uma proteção territorial.

Nesse sentido, a principal forma de evitar a obrigação internacional de conceder proteção para aqueles que dela necessitam é dificultar a entrada de possíveis solicitantes de refúgio nos territórios nacionais. Uma vez que uma pessoa tenha solicitado refúgio (enquanto o pedido em análise) essa pessoa não poderá ser retornada para o local onde sua vida e segurança corram risco. Também um refugiado não pode ser devolvido para o local de onde ele fugiu.

Nesse sentido, com o fechamento de fronteiras para possíveis solicitantes de refúgio, autoridades consulares influenciam diretamente a entrada de dessas pessoas ao negar ou dificultar a emissão de visto para nacionais de países que poderiam ser considerados refugiados. Nessa linha, vemos a atuação de países como os Estados Unidos da América (EUA) impedindo que pessoas entrem em seu território, analisando os casos em territórios de países como México e Guatemala. Também a União Europeia tem feito acordos com países como a Turquia e a Líbia para que eles processem os solicitantes de refúgio em seus territórios, impedindo que eles cheguem em solo europeu onde poderiam solicitar refúgio tendo seu direito a não serem devolvidos (non-refoulement) garantido. Outra forma que as autoridades consulares impactam na política de refúgio de um país é quando os interesses de política externa são priorizados no momento de reconhecer uma pessoa como refugiado. Há uma série de estudos que documentam que, nos EUA durante a Guerra Fria, nacionais de países comunistas considerados “inimigos” da nação eram reconhecidos como refugiados pelo governo estadunidense, enquanto cidadãos de ditaduras “aliadas” aos EUA não eram tidos como perseguidos políticos.

Autoridades consulares também têm uma atuação direta na política de reunião de famílias refugiadas que se separaram porque são os postos consulares no exterior que são os responsáveis por emitirem os vistos para que os familiares possam se reunir com o refugiado no país de refúgio. No caso do Brasil, desde 2017 com a aprovação da Lei de Migração (13.445), imigrantes permanentes e refugiados possuem o direito à reunião familiar. Também a reunião familiar foi alçada como um princípio da política migratória brasileira. Ao mesmo tempo, especialmente no caso dos refugiados, o Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE) desde 2013 tem um sistema facilitado de emissão de vistos para familiares de refugiados reconhecidos pelo governo brasileiro que foi negociado em parceria com o MRE para que esses possam entrar no país.

À primeira vista o procedimento de reunião familiar para refugiados no Brasil parece facilitado se compararmos com políticas mais restritivas adotadas por Canadá, EUA, Austrália e diversos países europeus. O Brasil adota um conceito expandido de família que inclui ascendentes, descendentes, companheiros (casados ou não) e demais familiares desde que comprava a dependência econômica com o refugiado que está no país. O procedimento é facilitado sem a necessidade de exames de DNA e testes de integração local dos familiares. Não há um prazo máximo para que as famílias se reúnam no país, nem um tempo mínimo que o refugiado tenha que esperar para iniciar o processo. Apesar disso, refugiados no país narram uma série de problemas no processo de reunião familiar. A maior parte deles nos postos consulares brasileiros no exterior, principalmente na Embaixada do Brasil em Kinshasa na República Democrática do Congo. Esses problemas levam à separação prolongada ou até permanente (em casao da negativo do visto) entre refugiados que já estão no país e seus familiares no exterior.

A tese de doutorado “Refúgio Significa Saudades”: A Política Brasileira de Reunião Familiar de Refugiados em Perspectiva Comparada (1997-2018) realizada no Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade de São Paulo (USP) mostra esses problemas e a influência do Ministério das Relações Exteriores no processo de reunião familiar de refugiados no Brasil. Durante a pesquisa de campo entre agosto e novembro de 2018, foram entrevistados 20 refugiados em São Paulo (cidade onde mais refugiados solicitaram a extensão da condição do refúgio para seus familiares) e 24 organizações da sociedade civil, autoridades brasileiras (incluindo representantes do CONARE e do MRE) e especialistas no tema da reunião familiar na região centro-sul do país. Além disso, foram analisados documentos da correspondência diplomática entre postos consulares no exterior e as Divisões das Nações Unidas (DNU) e Divisão de Imigração (DIM) na sede do MRE em Brasília. Essas são as duas divisões do MRE envolvidas com o tema da reunião familiar de refugiados.

Os entrevistados relataram que os principais problemas enfrentados nos postos consulares brasileiros (principalmente na Embaixada do Brasil em Kinshasa) são a negação de vistos sem informações para o familiar e para o refugiado no Brasil, longos períodos de agendamento de entrevistas de modo que o formulário preenchido pelo familiar do refugiado perde a validade, longas entrevistas incluindo com crianças e idosos em que são perguntados sobre o processo de refúgio dos refugiados no Brasil, exigências de documentos adicionais de difícil acesso para os familiares e que podem colocar suas vidas em risco (incluindo documentos que comprovem que o familiar também sobre alguma perseguição), corrupção e venda de vistos, maus-tratos aos familiares dos refugiados por funcionários da embaixada e retenção de passaporte.

Representantes do governo alegam que houve um aumento na solicitação de vistos de reunião familiar nos últimos anos (principalmente de congoleses) e que houve casos claros de apresentação de documentos falsos e situações em que o familiar não sabia nem o nome do refugiado no Brasil. Também há dificuldade para comprovar a relação de dependência entre o refugiado e o familiar (quando é necessário como em casos de irmãos), dado que a legislação não define o que seria dependência econômica. A análise da correspondência diplomática mostra que, em 2017, o então embaixador brasileiro em Kinshasa começou a enviar telegramas para o MRE sobre documentos falsos e casos de esposas que não sabiam o nome do marido que teriam ocorrido na Embaixada de Kinshasa. O Embaixador escreveu que haveria um esquema de venda de vistos de reunião familiar do qual refugiados congoleses no Brasil fariam parte formando uma “gangue de vistos de reunião familiar”. Depois disso, o MRE entrou em contato com o CONARE para esclarecer quem tinha a competência para emitir os vistos.

Anteriormente, havia um entendimento de que o CONARE analisaria os documentos dos processos de reunião familiar e solicitaria ao MRE que emitisse o visto. Contudo, desde maio de 2017, o CONARE passou a entender que o MRE (e seus postos consulares) estariam mais capacitados para fazer essa análise lá na ponta. Assim, os diplomatas passaram a ter autorização para, caso desejarem, realizarem exame confirmatório do parentesco nos postos consulares. Depois disso, vistos passaram a ser negados nas embaixadas. Porém, se e como esses exames confirmatórios ocorrem varia muito a depender do posto consular e se o diplomata é mais sensível ou não à causa do refúgio. Há telegramas da Embaixada de Kinshasa que mostram que o embaixador tem realizado entrevistas minuciosas pessoalmente com os familiares, inclusive que ele está tendo acesso aos processos de reconhecimento dos refugiados no Brasil. Assim, esses processos de elegibilidade que são confidenciais estão sendo usados para realizar o controle migratório das famílias dos refugiados.

Corrobora para esse fato a informação de que não há um treinamento específico para todos os postos consulares sobre o refúgio. Ou seja, as autoridades consulares estão preocupadas com o controle migratório, a segurança e a soberania nacionais e não com a integração local de refugiados que já estão no Brasil e de seus familiares que também podem estar em risco nos países de origem. Em 31 de outubro de 2018, o CONARE adotou a Resolução Normativa nº 27 que transfere todo o processo de reunião familiar para os postos consulares, tirando o protagonismo do refugiado e do CONARE sobre o tema de visto de reunião familiar. Essa nova regra aumenta o poder dos postos consulares sobre o tema de visto de reunião familiar e contribui para a separação das famílias dos refugiados no Brasil. Assim como em outros países do mundo, o Brasil separa famílias ao negar vistos de reunião familiar sem possibilidade de apelação ou revisão dos casos. A influência do Ministério das Relações Exteriores na política de reunião familiar por meio dos vistos precisa ser revista se o Brasil de fato estiver comprometido com a garantia do direito à família e à reunião familiar para os refugiados no país.

Patrícia Nabuco Martuscelli é Doutora em Ciência Política pela Universidade de São Paulo e pesquisadora do NUPRI.