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O Futuro do Programa Antártico Brasileiro: no cruzamento da política científica e a política externa

30/10/2019

Ignacio Cardone

A ciência e a política internacional têm vários pontos de cruzamento, tais como a carreira espacial e armamentista, o desenvolvimento tecnológico competitivo, a cooperação internacional em pesquisa, a transferência de conhecimento e tecnologia, a chamada diplomacia pela ciência¹ etc. Mas a Antártida é, muito provavelmente, o lugar no qual esse cruzamento adquire a sua máxima expressão. Neste continente, a participação política se encontra atrelada ao envolvimento ativo em pesquisa científica e tal atividade inclui um componente importante de efeito político internacional.

Assim sendo, o futuro da presença brasileira na Antártida resulta pouco alentador, como o revelam as declarações recentes dos pesquisadores brasileiros atuais mais proeminentes na área². O problema do desinvestimento em pesquisa Antártida no Brasil não é uma novidade, tendo sido sinalizada a possibilidade de suspensão da pesquisa em outras oportunidades³. Contudo, nesta ocasião as dificuldades as quais tem que enfrentar a presença brasileira na Antártida não decorrem de falta de financiamentos específicos, mas de uma política geral de desinvestimento em ciência⁴. Além da pré-existente dificuldade de financiamento das operações antárticas, a interrupção das bolsas do CNPq e CAPES, produto da redução de verbas e do contingenciamento orçamentário do Ministério da Educação, tem ameaçado a viabilidade de muitas pesquisas em curso. Isso significa que as ferramentas que pesquisadores e outros atores envolvidos na promoção do Programa Antártico Brasileiro têm utilizado para manter o financiamento do programa, tais como a influência a partir do chamado ‘Frente Parlamentar de Apoio ao Proantar’ para a aprovação de emendas orçamentárias, ficaram obsoletas, visto que o financiamento é destinado a operações de pesquisa. No entanto, as fontes de ingresso de uma quantidade significativa de pesquisadores que contribuem com o trabalho de pesquisa antártica dependem de financiamento por meio de bolsas. Assim, o problema atual não consiste no debate a respeito da importância das atividades brasileiras na Antártida, mas a respeito da importância das atividades científicas em seu conjunto.

Somado a isso, o rompimento do atual governo com o que têm sido considerado como linhas tradicionais da política externa do Brasil e a posição anti-ambientalista e anti-cientificista do atual ministro das relações exteriores, Ernesto Araújo, não proporcionam um panorama alentador para o Programa Antártico Brasileiro. Para um ministro que tem atacado em múltiplas oportunidades a existência de câmbios climáticos de origem antrópico⁵, as pesquisas que se realizam no continente branco – muitas das quais confirmam a presença de tal mudança⁶ – resultariam difícil de justificar, particularmente pelo seu alto custo em um contexto de redução e contingenciamento orçamentário para as áreas de Educação e Ciências. Com efeito, a baixa importância dada atualmente pelo governo aos marcos multilaterais, fazem difícil pensar que a participação brasileira no foro das Reuniões Consultivas do Tratado Antártico – já limitada desde antes – seja fortalecida.

Mesmo com a recente finalização das obras construtivas da Estação Antártica Comandante Ferraz e o anúncio da compra de um novo navio polar de apoio, que pareceriam indicar uma aposta pela presença brasileira no continente, a presença do Brasil na Antártida se encontra longe de estar garantida⁷. A existência de operações antárticas, muito especialmente aquelas realizadas oficialmente, devem ser orientadas à pesquisa científica segundo o previsto pelo Tratado da Antártida e os acordos complementares. Consequentemente, a presença do Brasil na Antártida sem a realização de pesquisa científica pode resultar no esvaziamento do papel do país como membro consultivo do Tratado, com o consequente dano político internacional, além do significativo dano científico, produto da interrupção de uma série de pesquisas de grande relevância com mais de trinta anos de continuidade.

Certamente, devemos insistir que a situação precária do Programa Antártico Brasileiro é, em muitos sentidos, preexistente às políticas científicas e exterior do atual governo; mas a natureza do desafio atual excede em muito aos anteriores. Nesse sentido, o acionar das forças armadas, particularmente a Marinha e a Força Aérea- pode oferecer um ponto de reasseguro para a presença do Brasil na região, graças à sua forte vinculação com a história do envolvimento nacional com a Antártida e o seu papel ativo nas atividades que lá tem lugar. Contudo, ao não se reverter o quadro geral da política educativa e científica e das atitudes gerais da atual orientação do Itamaraty, é difícil de esperar que o Brasil mantenha o seu lugar na política internacional Antártica. Como expressão do cruzamento da política externa e científica de um país, a Antártida vai também revelar se o Brasil continua a ser um jogador global tanto na sua política externa e científica, ou opta por descontinuar o caminho tecido com muito esforço nas décadas recentes, para ficar relegado a irrelevância internacional, tanto no âmbito político quanto científico.

1 Nos referimos aqui ao conceito de ´science diplomacy´, as vezes traduzido como ´diplomacia científica´, o qual, no nosso entendimento, constitui um equívoco.

2 Silveira, E. Como Cortes do governo podem paralisar pesquisas do Brasil na Antártida – 2 out 2019. BBC News Brasil. Último acesso em: 18/10/2019, https://www.bbc.com/portuguese/brasil-49887243; Mesquita, J. L. Pesquisas do Brasil na Antártica podem parar por motivos de cortes no orçamento – 4 out 2019. Mar sem Fim. Último acesso em: 18/10/2019, https://marsemfim.com.br/pesquisas-do-brasil-na-antartica-podem-parar-por-cortes/ Para uma recente análise do futuro do Brasil na Antártida, ver meu trabalho em: 3.7. Cardone, I. J. (2019) Brazil´s Antarctic Future. In: The Global Race for Antarctica: China vs the Rest of the World [ISPI Dossier 26 July 2019]. Org.: Sciorati, G. Italian Institute for International Political Studies, Milano.

3 Ver por exemplo: Pinto, A. S. de S. Sete anos após incêndio, base do Brasil na Antártida ficará pronta em março, 18 mar 2019. Ciência – Folha; Santiago, A. Pesquisas brasileiras na Antártida à beira de um colapso, 11 set 2019. Gazeta do Povo; Moraes, F. T. Falta de verba ameaça a pesquisa brasileira na Antártida, 29 mar 2018. Ciência – Folha; Floresti, F. Sem dinheiro, Brasil corre risco de ficar sem cientistas na Antártida, 23 mar 2018. Galileu – Folha; Farah, T. Pesquisa brasileira na Antártida pode ter apagão por falta de dinheiro, 13 jul 2016. BuzzFeed News; Wiltgen, G. Falta de verbas pode interromper pesquisa antártica, alerta cientista, 31 ago 2015. Jornal do Brasil; S/A. Zambiasi lembra visita à Antártica e alerta para falta de recursos, 13 mar 2007. Agencia Senado; Fernandes, E. Assumpção, R. C. Pouco dinheiro barra pesquisas brasileiras na Antártida, 2 jun 2005. Agência Câmara Notícias.
A respeito da evolução da política Antártica Brasileira ver: Sampaio, D.P. Cardone, I.J. Abdenur, A.E. (2017). A modest but intensifying power? Brazil, the Antarctic Treaty System and Antarctica. In: Dodds, K. Hemmings, A.D. & Roberts, P. Handbook on the Politics of Antarctica. Edward Elgar Publishing; Cardone, I. J. (2015). As posições brasileiras no sistema do tratado antártico com ênfase na questão ambiental [Dissertação de Mestrado]. UFPR.

4 Ver por exemplo: Grandelle, R. Verba para ciência em 2019 é ameaçada por contingenciamento, 16 out 2019. Sociedade – O´Globo. Sette, G. Futuro sem pesquisa, 6 set 2019. Istoé; Costa, G. Capes anuncia corte de 5,613 bolsas de pós-graduação para este ano, 2 set 2019. Agência Brasil; Ilhéu. T. Contingenciamento faz Federal de Uberlândia cortar bolsas e transporte, 19 ago 2019. Guia do Estudante e S/A. Contingenciamento do MEC pode parar atividades da UFRJ neste mês, diz reitora, 5 Ago 2019. Revista Forum.

5 Ver por exemplo: Amado, G. Ernesto Araújo nega aquecimento global: ´fui a Roma em maio e havia uma onda de frio´, 3 ago 2019. Época; e a sua desmentida: Filho, W. R. Ernesto Araújo desmente matéria da Època sobre aquecimento global: “Falsa”, 5 ago 2019. Opinião Crítica. Em ambas versões o ministro nega o câmbio climático e as bases -segundo ele falsamente científicas- nas que se baseia. Ver também: Di Cunto, R. Araújo, C. & Freitas, C. Novo chanceler diz que esquerda criou ´ideologia da mudança climática´, 15 nov 2018. Valor; Serna, R. Da luta contra o Foro de SP ao voto com islâmicos sobre mulheres, o novo Brasil de Ernesto Araújo, 17 Jul 2019. BBC News Brasil; Boadle, A. Brown, T. Brazil foreign minister says ´there is no climate change catastrophe´, 11 set 2019. Reuters e S/A. Para Ernesto Araújo, ´climatismo´seria forma de atacar soberania, 11 set 2019. Istoé.

6 Ver por exemplo: Turner, J. et al. (2005) ‘Antarctic climate change during the last 50 years’, International Journal of Climatology. Wiley-Blackwell, 25(3), pp. 279–294; Steig, E. J. et al. (2009) ‘Warming of the Antarctic ice-sheet surface since the 1957 International Geophysical Year’, Nature. Nature Publishing Group, 457(7228), pp. 459–462 e Cook, A. J. and Vaughan, D. G. (2010) ‘Overview of areal changes of the ice shelves on the Antarctic Peninsula over the past 50 years’, The Cryosphere, 4(1), pp. 77–98.

7 Cardone, I. J. (2019) Op Cit.

Ignacio Cardone é pesquisador do NUPRI.