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O Brasil de Ricupero

25/04/2018

Daniel Afonso da Silva

A diplomacia na construção do Brasil – 1750-2016 (Rio de Janeiro: Versal Editores, 2017) de Rubens Ricupero é a opera de uma vida, de um “empregado do Itamaraty”, diplomata de profissão, pensador por vocação e historiador por convicção.

Opera aberta pela “Minerva” de Tintoretto (1515-1594) e fechada pela “Aliança da Paz” de Guido Reni (1575-1642). Alegorias da paz pela negociação, pelo convencimento e pela diplomacia. Opera anunciada pela Carta das Costas de Magalhães de 1749 e pela pintura A pátria de Pedro Bruno de 1919. Concretude em território e em imaginação nacional. Opera ancorada na sagacidade atemporal dos ensinamentos de José Maria da Silva Paranhos Júnior, o barão do Rio Branco, referência matriz de um tipo de ser e de fazer da diplomacia brasileira. Opera abundante em qualidades. Sendo a generosidade, primeira e principal.

Rubens Ricupero foi alto funcionário do estado brasileiro por quase cinquenta anos. Nesse período, viveu e sentiu muito do que vai contido em A diplomacia na construção do Brasil – 1750-2016. Ele ajudou literalmente a construir seu objeto análise. Muita vez como lanterna na poupa. E aqui nos oferta a sua impressão sobre tudo.

Depois da generosidade, a discrição. Rubens Ricupero segue um diplomata, realista e pragmático. Observador irresistível das rugas da alma humana, bem ao estilo Charles-Maurice de Talleyrand-Périgord (1754-1838), inspirador maior dos diplomatas contemporâneos.

Depois da discrição, o amor desavergonhado pelo Brasil. Rubens Ricupero – nascido em São Paulo, em 1937, e, portanto, às portas dos 80 anos –, na vida e no livro, demonstra ter seguido em absoluto a recomendação de Mário de Andrade (1893-1945) em “devotar-se ao Brasil”, malgrado o ceticismo e o pessimismo.

Depois do amor desavergonhado pelo Brasil, a afeição pelo idioma pátrio. Ninguém lê A diplomacia na construção do Brasil – 1750-2016 sem sucumbir a sua justeza, agudeza e precisão. Não restam dúvidas que a genialidade das veredas de Guimarães Rosa (1908-1967) – examinador de cultura da prova de acesso de Ricupero ao Itamaraty em 1958 – suspira em todos os movimentos da opera de nosso embaixador.

Depois do amor à língua, o discernimento sobre a História. Rubens Ricupero define História como “uma túnica sem costura, um contínuo no espaço e no tempo, um rio perene que escorre, se espraia e transborda, mesclando águas claras e turvas, clamas e turbulentas” (p. 22). Essa concepção lhe permite a releitura da história do país na integralidade de sua globalidade e de seus segredos internos.

A diplomacia na construção do Brasil – 1750-2016, por isso e muito mais, era uma obra ausente no mosaico historiográfico brasileiro. Mas após ler e reler e refletir sobre tudo que nela contém e cotejar seus saberes com os existentes vai ficando evidente a imensa lacuna que a obra e seu autor, em lugar de fechar, abrem.

Falta se escrever um livro cujo tema e/ou o título seja “Rubens Ricupero, historiador”.

Notadamente após seu Visões do Brasil: ensaios sobre a história e a inserção internacional do Brasil (Rio de Janeiro: Record, 1995), Rubens Ricupero foi se afirmando como referência incontornável da historiografia brasileira sobre a História do Brasil pela mirada das Relações Internacionais. Poucos historiadores, diplomatas ou não, brasileiros ou estrangeiros, estudaram com tamanho afinco os momentos cruciais da história pátria pelo prisma da relação do país com o mundo e seu contrário. E quase nenhum com o mesmo charme e com a riqueza de detalhes por Rubens Ricupero praticados. Seria Rubens Ricupero, além de sucessor do barão, sucessor de Manuel de Oliveira Lima (1867-1928)?

Falta se escrever um livro cujo tema e/ou o título seja “Rubens Ricupero, articulista”.

O seu O ponto ótimo da crise (Rio de Janeiro: Revan, 1998) reuniu alguns de seus artigos publicados na Folha de S. Paulo entre 1995 e 1998. Mas Rubens Ricupero colaboraria com a Folha de S. Paulo, de modo intermitente, semanalmente, até 2014. Além assinar artigos frequentes em outros jornais e revistas nacionais e internacionais sem contar as entrevistas concedidas. Sempre analisando as conjunturas brasileiras e mundiais à chaud. Foram centenas de intervenções que merecem reunião e análise para, mais uma vez, evidenciar a sapiência de nosso autor. Seria Rubens Ricupero, pelo estilo e pela precisão, uma versão brasileira de André Fontaine (1921-2013)?

Falta se escrever um livro cujo tema e/ou o título seja “Rubens Ricupero, diplomata” e outro que seja “Rubens Ricupero, pensador das Relações Internacionais”.

Nenhum observador interno ou externo da formulação e da execução da política externa brasileira recente hesitará em afirmar que Rubens Ricupero segue “probablement le meilleur d’entre nous”. Ele participa da linhagem dos fidedignos “sucessores do barão” e pratica como ninguém a “diplomacia do conhecimento”. Sua atuação, portanto, mereceria análise e avaliação detidas. Seria Rubens Ricupero, pela argúcia e pela empatia, a versão brasileira de Henry Kissinger?

Falta se escrever um livro cujo tema e/ou o título seja “Memórias” – essas feitas pelas mãos do oleiro.

Verdade que A diplomacia na construção do Brasil – 1750-2016 carrega traços memorialísticos. Mas a vida e a obra de Rubens Ricupero ainda não couberam toda nessa opera, mesmo que imensa. Tirando por base seu magnífico Diário de bordo – a viagem presidencial de Tancredo (São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2010), vai evidente que nosso embaixador ainda tem muito a nos contar “antes de adormecer”. E não restam dúvidas que dona Marisa, que o acompanha e participa de tudo desde sempre, vai novamente entender: o monge precisa retornar à mesa de trabalho.

Tudo isso confirma A diplomacia na construção do Brasil – 1750-2016 de Rubens Ricupero como um manancial de inspirações. Um texto bem pensado e bem cosido. Sutil na forma e irretorquível no conteúdo. Uma visão geral do Brasil e do mundo desde a noite do tempo. Uma reflexão documentada e informada sobre a contínua viagem incompleta do país rumo à quimera do “sonho intenso”, aquele do hino. Uma avaliação da importância, imprescindível, da diplomacia somada a negociação, arbitragem e inteligência na condução desse sonho. Rubens Ricupero nos renova os conhecimentos sobre como chegamos até aqui e para onde ainda podemos ir.

Seu ponto de partida está no título “A diplomacia na construção do Brasil – 1750-2016”. Nele encontramos a justificativa para a intenção do autor em afirmar que “não houve (…) nenhuma tese ou conclusão que se desejasse provar a priori. O próprio título e as observações sobre o papel da política externa na construção dos valores do povo brasileiro nasceram com espontaneidade da lógica interior da narrativa e se impuseram pela força da evidência” (p. 23).

Uma primeira leitura do livro, levando em conta a justeza e a intencionalidade do título, reconhece ser isso mesmo. Mas olhando mais de perto e sentindo a força crescente da narrativa nas doze partes do volume, acrescidas de Prefácio, Introdução e Posfácio ao longo de quase oitocentas páginas, vai ficando patente ser “construção” um sinônimo intencional de “formação”, o que aproxima e distancia Rubens Ricupero da linhagem dos “intérpretes do Brasil” que o saudoso Antonio Candido de Mello e Souza (1918-2017) identificara a origem nas obras iniciais de Gilberto Freyre (1900-1987), Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982) e Caio Prado Jr. (1907-1990).

Aproxima no intuito de Rubens Ricupero em desvelar, como os demais, o enigma chamado Brasil. Distancia ao passo que Rubens Ricupero passa ao largo do “sentido da colonização”, da cordialidade e da miscibilidade como instrumentos de análise e ressalta e afirma a imperiosidade da diplomacia na construção do Brasil.

A diplomacia na construção do Brasil – 1750-2016, próxima e distante dos “intérpretes do Brasil”, apresenta uma ideia geral do país. Sem costura nem fissura. Dialoga com praticamente todos os temas e problemas canônicos e não-canônicos de nossa História e Historiografia. Seu núcleo corresponde aos mistérios da aquisição, ampliação e manutenção da soberania brasileira. Daí o ponto de partida do livro ser a formação do território brasileiro no período colonial e Alexandre de Gusmão (1658-1753) o representante maior. Em seguida, vem o século XIX, da transição para a Independência (1808-1820) à consolidação, apogeu e crise do Império do Brasil (1822-1889). Do Império à República emerge o zênite da obra: o barão do Rio Branco (1845-1912). “Ninguém encarnou de forma tão completa e acabada o ideal de diplomacia que trata este livro como José Maria da Silva Paranhos Júnior, barão do Rio Branco, verdadeiro refundador da política externa brasileira” (p. 276). Depois do barão, San Tiago Dantas (1911-1964) e a Política Externa Independente, outro momento de inflexão paradigmática da atuação internacional do Brasil (pp. 419 ss). Dos governos militares, à redemocratização, à estabilização política, econômico-financeira e social até o impeachment da presidente Dilma Rousseff em 2016 tudo aparece como decorrência. Sempre na busca do “sonho intenso”. “Quase 130 anos depois da Proclamação da República, ainda estamos longe de ter pátria para todos” (p. 745). Mas “o sonho perene da construção do Brasil é que torna a experiência humana digna de ser vivida em nossa terra” (p. 746). Sim: A diplomacia na construção do Brasil – 1750-2016 de Rubens Ricupero virou imprescindível para quem deseja singrar nesse sonho. E nisso reside seu maior trunfo.

Daniel Afonso da Silva é Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo e Pesquisador do NUPRI.