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Além da ponta do iceberg: o que está por trás da “política de separação de famílias” de Donald Trump?

25/06/2018

Patrícia Nabuco Martuscelli

Nas últimas semanas, noticiários do mundo todo apresentaram imagens e reportagens sobre crianças sendo separadas de suas famílias na fronteira dos Estados Unidos da América com o México. A política de tolerância zero anunciada pelo advogado geral do país em abril, já separou mais de 2300 crianças em menos de dois meses. Depois de duras críticas de personalidades nacionais e internacionais e políticos de ambos os partidos, Trump anunciou que manteria uma política de tolerância zero, porém sem separar famílias. Esse breve texto pretende apresentar três pontos que devem ser considerados para analisar esse tema: a situação nos países de dessas famílias que estão vindo, a política imigratória estadunidense e a separação de famílias como estratégia política e o poder da imagem da criança no campo político.

Segundo relatório de Meyer e Pachico (2018), ainda que o número de pessoas apreendidas na fronteira entre México e EUA seja o menor desde os anos 1970, houve um aumento no número de famílias e crianças oriundas da América Central solicitando refúgio nos EUA, observado desde o governo Obama. A legislação dos EUA reconhece como refugiadas pessoas que sofram perseguição no seu país de origem ou tenham fundado temor de sofrer uma perseguição por causa de sua religião, opinião política, nacionalidade, raça ou pertencimento a um grupo social específico. No ano de 2017, 11% das pessoas reconhecidas como refugiadas nos EUA eram de El Salvador, 10% da Guatemala e 7% de Honduras (American Immigration Council, 2018), depois da China esses eram os maiores grupos. Também houve um aumento no número de solicitantes de refúgio desses países nos últimos anos.

A situação de violência e perseguição vivida em El Salvador, Honduras e Guatemala foi documentada por diversas organizações internacionais como a Anistia Internacional (2016), o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (2017) e o International Crisis Group (2017) dentre outras. A região do Triângulo Norte da América Central é uma das mais violentas do mundo, com mais mortes do que muitos locais em conflito. A situação de violência das gangues está sendo observada de perto pelo governo norte-americano há muitos anos (United States Congressional Research Services, 2014). Gangues matam, extorquem e sequestram pessoas recrutam meninos para se tornarem “membros” e forçam meninas a se tornarem “namoradas”. Para aqueles que dizem não, a resposta é tortura e morte daqueles que foram contra o desejo das gangues e de seus familiares. Em meio a isso, as instituições dos Estados como a polícia são fracas e não conseguem oferecer a proteção que as pessoas precisam. Conclusão: essas famílias estão fugindo de situações de perseguição e solicitar refúgio nos Estados Unidos pode ser a sua única chance de sobrevivência. Enquanto a situação nos países de origem não melhorar, as famílias e crianças continuarão chegando independentemente das políticas adotadas. O discurso da administração Trump de que essas crianças são criminosas, estupradores e membros de gangue também não se sustenta na prática (Engbersen and Van der Leun, 2001; Reid et al. 2005; Lee and Martinez, 2009). Há diversos estudos que mostram que os índices de criminalidade em populações imigrantes são menores do que em populações nacionais. Pelo contrário, já há dados que mostram que o medo causado pelas declarações de Trump está fazendo a população latina denunciar menos crimes violentos cometidos em diversas cidades dos EUA como violência domésticas e estupros (Bever, 2017). Em último caso, isso está tornando as comunidades como um todo mais inseguras.

A segunda questão é como a política imigratória dos EUA lida com isso. De acordo com Massey (2013), um dos maiores pesquisadores sobre imigração do país, a própria política imigratória norte-americana foi responsável por gerar cerca de 12,1 milhões de pessoas indocumentadas no país, sem direitos e sem possibilidade de regularização. A fronteira entre México e Estados Unidos é uma das mais militarizadas do mundo. A legislação americana não demanda a separação das famílias, porém abre espaço para que pessoas que cruzem a fronteira de maneira irregular sejam responsabilizadas criminalmente por esses atos e sejam presas enquanto aguardo o resultado de seus processos, mesmo que elas tenham pedido refúgio. Contudo, crianças não podem ser presas. Em 1997, a Suprema Corte dos Estados Unidos julgou o caso Flores v. Reno que levou ao chamado Flores Agreement. Por essa decisão, crianças devem ser liberadas para seus familiares ou conhecidos “sem atrasos necessários” ou devem ser mantidas em locais menos restritivos possíveis quando não houver alguém que fique com essa criança. Ainda assim, essas crianças enfrentarão processos judiciais sozinhas sem direito a um advogado pago pelo governo e tendo que defender seus casos de refúgio em um sistema migratório complexo. Para completar o quadro, o advogado Geral Sessions apresentou uma interpretação de um caso dizendo que violência de gangues e violência doméstica não são casos para reconhecimento de refúgio nos EUA (Benner e Dickerson, 2018). Conclusão: crianças e famílias separadas terão que enfrentar cortes sem um advogado tentando pedir refúgio em casos cada vez mais difíceis.

Obama estava lidando com a migração de famílias criando centros de detenção para famílias como o Berks Detention Center na Filadélfia, o que já era amplamente criticado por organizações da sociedade civil no país. Contudo, Trump tentou usar a separação de famílias como uma estratégia para tentar diminuir o número de pessoas que estavam tentando vir para o país e como moeda de barganha para que o Congresso passe legislações que sejam do interesse do Executivo, incluindo a construção do muro. Ainda esse ano, há eleições para representantes do Congresso (midterm elections). Assim, a política de tolerância zero também se insere na tentativa de Trump de mostrar para seus eleitores que, ainda que não tenha conseguido construir o muro, ele está combatendo a “imigração indocumentada”. Com a nova ordem executiva, o que Trump fará agora é investir em centros de detenção para famílias a exemplo do que Obama já vinha fazendo. Centros de detenção, em sua maioria, são organizações privadas que rendem lucros para algumas poucas empresas que constroem e administram esses empreendimentos.

O fato de Trump ter voltado atrás em sua política de separação de famílias poderá ser visto como fraqueza pelos eleitores mais conservadores, contudo políticos de seu próprio partido estavam pressionando o presidente para deixar de separar crianças indefesas. É muito sintomático o fato de que imagens de crianças sofrendo e chorando rodaram o mundo e geraram pressões em um dos governos mais poderoso do mundo, forçando uma mudança de política. Isso ocorre porque a criança representa a inocência e a vulnerabilidade, ou seja, os EUA querem ser os defensores da democracia e da liberdade e não os abusadores e torturadores de crianças, ainda que essas sejam “outras” crianças (Bhabha, 2014). A imagem das crianças separadas nesse caso pode ser comparada à pouca atenção dada às crianças desacompanhadas que continuam a chegar na fronteira. Como essas crianças são mais velhas, elas tendem a ser classificadas como menores, adolescentes ou jovens, o que afasta a ideia da infância como ligada ao cuidado, afeto e à necessidade de proteção.

Por fim, ainda que família estejam juntas a partir de agora, elas estarão em centros de detenção, enfrentando processos mais difíceis para poderem ficar nos Estados Unidos de maneira regular, mesmo correndo o risco de serem deportadas para locais em que suas vidas estejam ameaçadas. A política de Trump de separação das famílias revelou apenas a ponta de um iceberg que está sendo orquestrado desde que o presidente assumiu o poder por meio do posicionamento de figuras anti-imigração em cargos-chave do Executivo. O objetivo final dessa administração é dificultar a vida de famílias e crianças que demandam proteção no país tornando mais restritos políticas, procedimentos e opções disponíveis para quem entra nos EUA sem um status migratório.

Referências

AMERICAN IMMIGRATION COUNCIL. Fact Sheet Asylum in the United States, May 14, 2018. Disponível em: https://www.americanimmigrationcouncil.org/research/asylum-united-states. Acesso em 21 jun. 2018.

AMNESTY INTERNATIONAL. Home Sweet Home? Honduras, Guatemala and El Salvador’s Role in a Deepening Refugee Crisis, 14 October 2016. Disponível em: http://www.refworld.org/docid/58061d024.html. Acesso em 21 jun. 2018.

BENNER, Katie; DICKERSON Caitlin. Sessions Says Domestic and Gang Violence Are Not Grounds for Asylum. The New York Times, June 11, 2018. Disponível em: https://www.nytimes.com/2018/06/11/us/politics/sessions-domestic-violence-asylum.html. Acesso em 21 jun. 2018.

BEVER, Lindsey. Hispanics ‘are going further into the shadows’ amid chilling immigration debate, police say. The Washington Post, May 12, 2017. Disponível em: https://www.washingtonpost.com/news/post-nation/wp/2017/05/12/immigration-debate-might-be-having-a-chilling-effect-on-crime-reporting-in-hispanic-communities-police-say/?noredirect=on&utm_term=.66df2973a17a. Acesso em 21 jun. 2018.

BHABHA, Jacqueline. Child migration and human rights in a global age. Princeton University Press, 2014.

DEPARTMENT OF HOMELAND SECURITY. Refugees and Asylees, 2018. Disponível em: https://www.dhs.gov/immigration-statistics/refugees-asylees. Acesso em 21 jun. 2018.

INTERNATIONAL CRISIS GROUP (ICG). Mafia of the Poor: Gang Violence and Extortion in Central America, 6 April 2017, Latin America Report N°62. Disponível em: < http://www.refworld.org/docid/58e74ed64.html>. Acesso em 21 jun. 2018.

MASSEY, Douglas S. America’s immigration policy fiasco: Learning from past mistakes. Daedalus, v. 142, n. 3, p. 5-15, 2013.

MEYER, Maureen; PACHICO, Elyssa. Fact Sheet: U.S. Immigration and Central American Asylum Seekers. Washington Office on Latin America, 01 Feb 2018. Disponível em: https://reliefweb.int/report/united-states-america/fact-sheet-us-immigration-and-central-american-asylum-seekers. Acesso em 21 jun. 2018.

UN HIGH COMMISSIONER FOR REFUGEES (UNHCR), Northern Triangle of Central America Situation Factsheet (February 2017), February 2017. Disponível em: http://www.refworld.org/docid/58aae2bb4.html. Acesso em 21 jun. 2018.

UNITED STATES CONGRESSIONAL RESEARCH SERVICE. Gangs in Central America, 20 February 2014. Disponível em: http://www.refworld.org/docid/5640480e4.html. Acesso em 21 jun. 2018.

USCIS. FY 2017 Asylum Statistics. Disponível em: https://www.uscis.gov/sites/default/files/USCIS/Outreach/Upcoming%20National%20Engagements/PED_FY17_CFandRFstatsThru09302017.pdf. Acesso em 21 jun. 2018.

Patrícia Nabuco Martuscelli é Pesquisadora do NUPRI e Doutoranda em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Bolsista CAPES. Visiting Scholar no Carolina Population Center (UNC-Chapel Hill). Email: patnabuco@usp.br