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Rotular o Hezbollah traz prejuízos ao Brasil

27/08/2019

Isabelle Christine Somma de Castro

O movimento para que o Brasil passe a considerar o Hezbollah e o Hamas como grupos terroristas não é novo. Apesar da pressão norte-americana, as administrações dos presidentes Fernando Henrique Cardoso, Luis Inácio Lula da Silva, Dilma Rousseff e até Michel Temer resistiram sem pestanejar. O motivo provável é que essa mudança não traria uma única vantagem para o Brasil e ainda poderia criar entraves de ordem extensa e variada.

Após os atentados de 11 de setembro de 2001, e principalmente durante a escalada que culminou com a guerra entre Israel e Líbano em 2006, o governo dos Estados Unidos vem pressionando o Brasil, Paraguai e Argentina, a adotar uma legislação a sua moda para tratar do tema terrorismo, como apontam e-mails vazados pelo site Wikileaks. Entre as indicações, encontra-se a adoção de uma lista de grupos terroristas publicada pelo Departamento de Estado no relatório anual Country Reports on Terrorism.

A lista tem como principal efeito direto a investigação de transações financeiras de membros desses grupos no sistema bancário de quem o adota, no caso, os EUA. O mesmo ocorreria, portanto, com o Brasil. Mas isso implicaria a criminalização de boa parte da enorme comunidade libanesa e palestina no País, que envia remessas de dinheiro para familiares que podem ou não ter envolvimento com algum dos grupos. Tanto o Hamas como o Hezbollah participaram de eleições e o último ainda faz parte do governo do Líbano. Portanto, pessoas que enviam dinheiro a um parente que é filiado ao partido ou que doa para entidades de caridade gerenciada por eles pode vir a ser preso pelo crime de financiar o terrorismo internacional.

Entrar no debate sobre se esses grupos são ou não são terroristas envolve a própria discussão sobre o que é terrorismo. Isso ainda não foi realizado no Brasil apesar da Lei 13.260, sancionada por Dilma em 2016, versar sobre o que são “atos de terrorismo”. Por isso, é mais indicado para o país seguir com as diretivas da Organização das Nações Unidas, que considera como terroristas os grupos Al Qaeda e Taliban e seus associados (como Boko Haram). É digno de nota que, apesar de o Taliban figurar com destaque na lista de terroristas da ONU e do Departamento de Estado dos EUA, o país vem há mais de uma década realizando negociações de paz com o grupo.

Argentina e Paraguai cederam recentemente às pressões e incluíram o Hezbollah em suas listas. Desde os atentados de 1994 e 1996 contra alvos judaicos em Buenos Aires que mantaram mais de uma centena de pessoas, a Justiça argentina vem acusando o grupo de ter operacionalizado os atentados, utilizando território brasileiro e paraguaio para comprar e transportar os explosivos. As investigações dos atentados têm muitas lacunas e até hoje não se encontram concluídas, especialmente no que tange ao envolvimento de membros da Secretaria de Inteligencia del Estado (SIDE), o serviço secreto argentino. Até o suicídio suspeito do principal promotor do caso, Alberto Nisman, em 2015, ainda não foi totalmente esclarecido.

A tendência do atual governo brasileiro é ceder aos desejos dos presidentes Donald Trump e do israelense Benjamim Netanyahu sem nenhuma contrapartida. Como ocorreu no caso da mudança da Embaixada brasileira de Tel Aviv para Jersualém, que se mostrou uma atitude bastante inconsequente, apesar de todos os avisos anteriores. Jair Bolsonaro já foi obrigado a voltar atrás, assim como o governo paraguaio, que não só prometeu, mas realmente mudou o endereço, e teve de voltar para Tel Aviv muito pouco tempo depois.

Essa associação com o governo Trump, apesar de agradar um certo público, prejudica o Brasil em vários sentidos. Primeiro é que se o atual mandatário americano perder a eleição a ser realizada em 2020 nos EUA, o governante brasileiro vai ter que se reinventar para estabelecer uma boa relação com um eventual presidente democrata. Uma coisa é alinhar-se com um país, outra é alinhar-se com o governo de um certo partido.

Outro tema em que o Brasil sai perdendo é no campo diplomático. Com esses movimentos pró-EUA e pró-Israel, o Brasil passa a ser visto como tendo um viés, afastando-o de eventuais discussões sobre acordos de paz e até comprometendo a atual e futuras operações de paz. Atualmente, o país comanda da força de paz marítima da ONU no Líbano (Unifil), onde se encontra desde 1978. Os recentes alinhamentos comprometem em cheio a posição de observador isento na região, fazendo com que a participação brasileira e a própria segurança dos participantes fique em cheque.

E é nas questões financeiras e econômicas que essa mudança de posição se mostra mais surpreendente. Com a criminalização dessas remessas, serviços como o Transferwise, serão mais utilizados. Esses sites fazem remessas legais e não passam pelo sistema bancário, pois utilizam o método hawala, em que o dinheiro não sai do país. Ou seja, as remessas saem do radar das autoridades e ainda penalizam o sistema bancário, que tem de fazer mais e checagens e também vai perder transações.

A questão econômica ficou bem clara com o caso da embaixada em Jerusalém. A ameaça de corte na importação de carne halal brasileira pelos países árabes fez o governo recuar. Portanto, criar empecilhos com fortes parceiros comerciais é temerário. O Brasil teve um superávit no comércio com o Irã, que não é um país árabe, mas é aliado ao Hezbollah e por isso o principal alvo das sanções ao grupo, de US$ 2,2 bilhões em 2018. Por outro lado, o país teve déficits com os EUA, US$ 271,05 milhões, e com Israel, de US$ 847,95 milhões, no mesmo ano de referência. Ou seja, se o Brasil tomar uma decisão que agrade outros países, talvez seja a hora de pedir uma contrapartida econômica, principalmente nesse momento tão delicado para os cofres nacionais.

É patente que a questão ideológica está movendo as decisões do governo Bolsonaro em detrimento aos campos diplomático e estratégico. O Brasil tem um capital diplomático construído durante décadas, e que demandou decisões difíceis, mas que tinham em grande medida a finalidade manter o país em um rumo que não comprometesse suas boas relações com outros países. Jogar tudo isso para o alto e ainda não receber nada em troca parece um ato de pouca sapiência.

Isabelle Christine Somma de Castro é bolsista Fapesp de pós-doutorado pelo Departamento de Ciência Política da USP com a pesquisa “A conexão entre terrorismo internacional e a Tríplice Fronteira durante as administrações George W. Bush e Barack Obama (2001-2016)”. É integrante do Núcleo de Pesquisas em Relações Internacionais (Nupri-USP), Grupo de Pesquisa Tríplice Fronteira e Relações Internacionais (GTF-Unila) e do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU).